Há um ponto em que o Direito se converte em ruído. Quando a palavra, ponte entre o humano e o justo, esvazia-se em fórmulas, o processo vira simulacro, e a Justiça, aparência. O verbo, antes solene e significativo, dissolve-se em burocracia, até restar apenas o eco de uma linguagem que fala muito e pouco diz. É aí que o Direito deixa de dizer.
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A erosão da linguagem
A erosão da palavra é o primeiro sintoma de uma crise ética. Quando decisões se reduzem a copiar e colar, o pensamento abdica de sua função. Repetem-se precedentes sem leitura, citações sem convicção, e argumentos sem autoria. A jurisprudência, que deveria ser sabedoria acumulada, converte-se em coleção de atalhos. O Direito, então, perde o tom humano e adota o ruído mecânico da repetição.
A perda do espanto
Perder a palavra é também perder o espanto. O jurista que se acostuma ao cárcere, à dor e à violência deixa de se surpreender com o intolerável. É o início da anestesia moral. O maior fracasso do Estado de Direito é transformar o absurdo em rotina e o humano em número de processo. O espanto é o que nos impede de aceitar a barbárie como ofício.
O verbo como fundação
O Direito é, antes de tudo, arte da palavra. Toda norma é uma sentença; toda sentença, uma narrativa. Juízes, promotores e advogados escrevem o destino de alguém por meio do verbo. O problema é que a linguagem jurídica se tornou autorreferente, técnica sem alma, afastada da vida que deveria proteger. O formalismo, antes garantia de segurança, tornou-se refúgio da insensibilidade.
O silêncio das consciências
A palavra gasta produz silêncio. Não o que reflete, mas o que consente. O sistema fala demais e escuta de menos. Processos inteiros são decididos sem que ninguém realmente ouça o outro. A verborragia institucional mascara a ausência de escuta autêntica. O discurso prolixo encobre o vazio da consciência.
O espanto como origem da ética
A filosofia sabe desde há muito: o espanto é o princípio do pensamento, como ensinaram os antigos. Em Arendt, resistência à banalidade do mal. No Direito, o espanto é a centelha ética que impede o profissional de tornar-se máquina. É ele que faz o defensor indignar-se, o juiz hesitar diante da dúvida, o promotor conter o automatismo da condenação.
A palavra como resistência
Recuperar a palavra e o espanto é tarefa urgente. É preciso devolver ao verbo jurídico sua densidade e à prática forense sua humanidade. Cada petição, cada voto, cada decisão deve ser exercício de sentido, não de aparência. O Direito só existe enquanto alguém, em algum lugar, ainda se espanta com a injustiça e decide nomeá-la.
O verbo e o espanto
O Direito não se sustenta em leis, mas na palavra que traduz o espanto, no verbo que significa, no olhar que não se acomoda. Enquanto houver quem se comova com o sofrimento e procure, com palavras, restituir-lhe a dignidade, o Direito não estará perdido.